A vida dos outrosPaulo Teixeira Pinto é autor de uma proposta de revisão constitucional que pretende liberalizar os despedimentos. Paulo Teixeira Pinto garantiu para si próprio, no BCP, uma indemnização de 10 milhões de euros e uma pensão anual de 500 mil até ao fim da vida. Ernâni Lopes propôs a redução salarial dos funcionários públicos em 10, 20 ou 30 por cento. Sem explicações. A cru. Ernâni Lopes recebe, desde os 47 anos, uma reforma do Banco de Portugal. Campos e Cunha defendeu a taxa fiscal plana, o que representaria uma perda fiscal significativa para o Estado e, já agora, o fim do papel redistributivo dos impostos. Campos e Cunha recebe, desde os 49 anos, com prejuízo para os contribuintes, uma reforma de oito mil euros por ter ocupado o cargo de vice-governador do Banco de Portugal por seis anos. Terá mesmo abandonado o Governo para não ter de deixar de a receber.
Não quero fazer um julgamento do caráter destas pessoas. Não é sequer a incoerência que me incomoda. Quem nunca foi incoerente que atire a primeira pedra. Não me interessa a caça às bruxas. Interessam-me os mecanismos que levam à insensibilidade social da nossa elite. Estas três pessoas não podem compreender os efeitos das propostas que apresentam. No mundo em que vivem a flexibilidade laboral só tem consequências positivas. Num país sem mobilidade social, o preço brutal do risco é-lhes desconhecido.
Da mesma forma, a sua relação com o Estado é de um enorme conforto. Conforto de que, estou seguro, se julgam merecedores. Nem vou discutir se são. Vamos partir do princípio que sim. O problema é que a imagem que têm do Estado, do funcionalismo público ou das relações laborais é a imagem que a sua própria experiência lhes devolve: um Estado generoso, um funcionalismo público cheio de privilégios e relações de trabalho com todas as garantias. E é esta imagem distorcida que lhes molda a opinião política. Podia, através da racionalidade que a política permite, não ser. Mas é.
Se as suas propostas fossem justas, nem o facto de quem as propõe ser incoerente faria com que elas fossem injustas. Acontece que as práticas de quem propõe, não dizendo nada sobre a justiça de cada proposta, dizem muito do contexto em que essas propostas aparecem. E o contexto é o de uma sociedade desigual nos sacrifícios e nas vantagens, precária e insegura para a maioria e garantista e blindada para uma minoria. O problema que aqui me interessa não é apenas ético, apesar da ética também contar. É social. É o de uma elite que vive num mundo à parte, com regras à parte, e é por isso incapaz de perceber a vida dos outros.
Poderiam ser ricos e perceber tudo isto. Poderiam ser pobres e não perceber nada disto. A vida está cheia destas incongruências e não sou dos que acham que alguém que defende a justiça social tem obrigação de levar uma vida espartana e que os pobres têm obrigação de ser socialistas. Mas julgando, como julgam, que os seus privilégios excecionais resultam do mérito, não podiam deixar de julgar que as banais dificuldades dos outros resultam de desmérito. Quem vive confortável na injustiça nunca poderá compreender a sua insuportabilidade. Quem pensa que o privilégio é um direito nunca poderá deixar de pensar que a pobreza é um castigo.
Daniel Oliveira
Texto publicado na edição do Expresso de 31 de julho de 2010