Para alguns, esta época de escrutínio popular virtual, é a quinta-essência da democracia. Toda a gente comunica com toda a gente sobre tudo, e tudo é razão para comunicar com toda a gente (vide “Caso Maitê”). Acontece que o tempo não estica, nem a nossa memória ou capacidade de concentração. Assim perdemos tempos infinitos com o imenso lixo informativo com que literalmente somos submersos no quotidiano digital.
Paul Starr, num extensíssimo artigo que publicou a 4 Março no The New Republic, alerta para os perigos decorrentes desta alteração de comportamentos.
Apesar de longo, recomendo vivamente a sua leitura principalmente aos profissionais da comunicação.
Na prática, por maiores que sejam as tentativas de adaptação dos meios de informação tradicionais às novas plataformas de partilha de conhecimento, a lei da substituição já se faz sentir, e com ela, um enfraquecimento das empresas que sustentam os projectos de comunicação mais consistentes. Neste texto intitulado: Goodbye to the Age of Newspapers (Hello to a New Era of Corruption), o autor associa o “downfall” dos grandes jornais a uma maior incapacidade destes de perscrutarem a verdade para lá da opacidade burocrática dos Estados e das suas decisões. Que não existam ilusões, só muito dificilmente, comodamente sentados no nosso sofá da sala, vamos conseguir deslindar um novo Watergate. O autor vai mais longe ao crer que há quem aproveite com o “fim da era dos jornais”, e contribua activamente para um crepúsculo prematuro da dita.
A democracia contemporânea e a imprensa, principalmente a escrita, cooperaram e dirimiram competências que provaram ser correspondentes. Assim fizeram o seu caminho, ambas prosperando até à era digital. É inegável que ambas se alimentaram e disciplinaram. A democracia aprofundou-se nos jornais, e os jornais atingiram a sua plenitude nas democracias mais avançadas.
Chegados à era do digital, da internet, dos blogues do Twitter, de todo um mundo literalmente na palma da mão (palmtop), assistimos à mudança de paradigma naquele que foi durante a segunda metade do século XX o mecanismo de auto regulação por excelência das democracias modernas: o jornalismo profissional e independente. Alicerçado economicamente em fortes grupos de media, os jornais que davam garantias de coerência, ética, e profundidade na reportagem da realidade, foram paulatinamente, sendo substituídos por uma espécie de “faça você mesmo”. Hoje, pela acessibilidade com que está à disposição do cidadão comum a acuidade dos motores de busca que, qual alegoria, cada um de nós tem a ilusão do acesso a todas as fontes de informação world wide (…web). Assim, criadas as devidas condições, nasceu em cada cidadão um repórter X que se auto-recria nas noites de insónias pesquisando e opinando (virtualmente) sobre o que lhe dá na real gana. Como um treinador de bancada, após algumas horas de navegação e uns poucos milhares de caracteres publicados no Facebook, o cidadão/repórter X acha-se mais ciente dos problemas do planeta e primus inter pares no apontamento das soluções para Mundo, e tem para si, que se fosse director do Expresso fazia melhor trabalho do que o Henrique Monteiro…
Sem jornais, sem jornalismo de investigação, a sociedade será consideravelmente mais oculta aos seus próprios olhos. Promotores de comportamentos ilegais ou socialmente censuráveis, como o da corrupção, podem desse modo, e com um muito maior sentimento de impunidade, grassar silenciosamente a coberto do escrutínio de um pretenso jornalismo popular que nada descobre e que pouco denuncia.
O que seria do processo Casa Pia sem jornalismo de investigação e grandes jornais que o suportem?
A esta hora o Bibí ainda andava a transportar alunos da Casa Pia para actividades extra-curriculares.
A ver vamos.
Não é cientificamente, que podemos afirmar o que quer que seja sobre o que os novos comportamentos informáticos podem influir definitivamente na imprensa, e muito menos na qualidade da democracia.
Mas os primeiros indicadores estão aí:
Menos leitores/consumidores - Desequilíbrio na balança entre os proveitos de venda em banca e as receitas de publicidade - Maior dependência do poder económico.
Enfraquecimento das empresas de comunicação social - Piores condições de trabalho/remunerações para os seus profissionais - Menor liberdade destes no exercício de quaisquer funções, quanto mais no exercício da crítica pública...
Empresas de media mais fracas - Mais aglutinações e junções entre estas - Menos títulos - Menor diversidade de projectos e de linhas editoriais.
A democracia como a conhecemos necessita dos jornais. A democracia do futuro como a não conseguimos adivinhar, a ser construída sem jornais, não augura nada de bom.
“Tenho mais medo de três jornais do que de cem baionetas”
Napoleão Bonaparte
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