No Outono de 1989 conduzi na RTP os debates entre os candidatos a Lisboa. O grande confronto foi PS/PSD. Duas candidaturas notáveis. Jorge Sampaio, secretário-geral, elevou a política autárquica em Portugal a um nível de importância sem precedentes ao declarar-se candidato quando os socialistas viviam um dos seus cíclicos períodos de lutas intestinas. O PSD escolheu Marcelo Rebelo de Sousa.
No debate da RTP confrontei-os com a fotocópia de documentos dos arquivos do executivo camarário do CDS de Nuno Abecassis. Um era o acordo entre os promotores de um enorme complexo habitacional na zona da Quinta do Lambert e a Câmara. Estipulava que a Câmara receberia como contrapartida pela cedência dos terrenos um dos prédios com os apartamentos completamento equipados. Era um edifício muito grande, seguramente vinte ou trinta apartamentos, numa zona que aos preços do mercado era (e é) valiosíssima. Outro documento tinha o rol das pessoas a quem a Câmara tinha entregue os apartamentos. Havia advogados, arquitectos, engenheiros, médicos, muitos políticos e jornalistas. Aqui aparecia o nome de personagem proeminente na altura que era chefe de redacção na RTP.
A lista discriminava os montantes irrisórios que pagavam pelo arrendamento dos apartamentos topo de gama na Quinta do Lambert. Confrontados com esta prova de ilicitude, os candidatos às autárquicas de 1989 prometeram, todos, pôr fim ao abuso. O desaparecido semanário Tal e Qual foi o único órgão de comunicação que deu seguimento à notícia. Identificou moradores, fotografou o prédio e referiu outras situações de cedência questionável de património camarário a indivíduos que não configuravam nenhum perfil de carência especial. E durante vinte anos não houve consequência desta denúncia pública.
O facto de haver jornalistas entre os beneficiários destas dádivas do poder político explica muito do apagamento da notícia nos órgãos de comunicação social, muitos deles na altura colonizados por pessoas cuja primeira credencial era um cartão de filiação partidária. Assim, o bodo aos ricos continuou pelas câmaras de Jorge Sampaio e de João Soares e, pelo que sabemos agora, pelas câmaras de outras forças partidárias. Quem tem estas casas gratuitas (é isso que elas são) é gente poderosa. Há assessores dispersos por várias forças políticas e a vários níveis do Estado, capazes de com uma palavra no momento certo construir ou destruir carreiras. Há jornalistas que com palavras adequadas favoreceram ou omitiram situações de gravidade porque isso era (é) parte da renda cobrada nos apartamentos da Quinta do Lambert e noutros lados. O silêncio foi quebrado agora que os media se multiplicaram e não é possível esconder por mais vinte anos a infâmia das sinecuras. Os prejuízos directos de décadas de venalidade política atingem muitos milhões.
Não se pode aceitar que esta comunidade de pedintes influentes se continue a acoitar no argumento de que habita as fracções de património público "legalmente". Em essência nada distingue os extorsionistas profissionais dos bairros sociais das Quintas da Fonte dos oportunistas políticos que de suplicância em suplicância chegaram às Quintas do Lambert. São a mesma gente. Só moram em quintas diferentes. Por esse país fora.
Mário Crespo in JN 29-09-2008
5 comentários:
Eu já tinha falado desse artigo há uma semana (ver aqui:http://cacalharas.blogspot.com/2008/09/atribuio-de-casas-em-lisboa-o-caso-da.html) e como disse nessa altura: ainda bem que há memória histórica! É pena que ainda não se saiba ainda, a bem da transparência e da "accountability" que deve existir relativamente a este tipo de situações, a lista de beneficiários, que no caso da Quinta do Lambert, Mário Crespo diz que inclui advogados, arquitectos, engenheiros, médicos, muitos políticos e jornalistas, ou seja, tudo gente muito necessitada.
Mea culpa, não tinha lido o teu post.
O que me choca mais na lista é nela constarem jornalistas influentes.
Dificilmente poderá haver responsabilização, quando aqueles que deveriam ajudar a denunciar estas benesses são os primeiros a usufruir das mesmas.
Bela ética jornalística...
Vamos ver o que vai acontecer quando a lista com os nomes, com os imóveis e o valor da rendas for divulgada (espera-se apenas por uma autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados). É que os jornalistas tanto andam de braço dado com o poder político como fazem perseguições "ad hominem" sem sentido nenhum... Se os políticos estão obrigados a entregar uma declaração de interesses, há muito que defendo que os jornalistas também o deviam fazer.
Mas aí levanta-se um problema: um jornalista que tenha outros interesses para além de apurar e divulgar toda a verdade, deixa de poder ser considerado jornalista...
Caros amigos, mais uma vez esta provada a minha teoria que arrendar uma casa saí "muito" (neste caso) mais barato que comprar-la.
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