quinta-feira, 26 de março de 2009

Titanic


A cena é sobejamente conhecida para merecer ser descrita. Na confusão de uma ameaça catastrófica e perante a possibilidade de uma mortandade sem igual, o comandante do Titanic manda tocar a orquestra.

Para atenuar a angústia? Só para fazer qualquer coisa? Para desnortear os mais incautos dando-lhes uma reconfortante aproximação à morte? Porque pensa que ainda se pode evitar a morte, não fazendo por isso qualquer sentido soar um alarme despropositado? Para ocupar uns quantos que não terão lugar nos botes salva-vidas?

Mas o pavoroso caricato de ver um grupo de gente a tocar uma valsa perante a morte iminente é demasiado.

As taxas de juro têm descido, dizem. No entanto, isso não é absolutamente verdade. Nos últimos 12 meses observámos um movimento a dois tempos. Depois de vários meses em que as taxas de juro da dívida pública para todos os prazos de vencimento subiram permanentemente em virtude de uma persistente actuação do Banco Central Europeu, a partir de Julho de 2008 assistiu-se ao início da sua descida. Essa descida foi acentuadamente marcada para as taxas de juro de curto prazo, mas também as de longo prazo observaram quedas sensíveis, apresentando a curva da estrutura temporal das taxas de juro um valor mínimo em Dezembro de 2008.

No entanto, apesar do custo da dívida pública ter continuado a descer nos prazos curtos passando para 1,06% em meados de Março, começou a subir para prazos longos e num ápice subiu para 4,66% a 10 anos e 4,88% a 30 anos. Por contrapartida, em meados de Março, a Alemanha financiava-se a 3,11% para o prazo de 10 anos e a 3,98% a 30 anos. Isto é, o ‘spread' entre o custo da dívida pública portuguesa e a alemã a 10 anos é de 1,55%. Mas para prazos mais curtos aquele ‘spread' manteve-se elevado, apresentando-se a 1,42% para o prazo de 5 anos. Esta situação tem implicações importantes.

Primeiro, o nosso Orçamento do Estado é relativamente mais agravado do que seria se o nosso risco de crédito da república fosse menor. Gastamos mais receita para pagar mais juros para o mesmo financiamento, restando-nos menos para investimento ou despesa social.

Segundo, este efeito contamina o custo do capital das empresas e também elas passaram a pagar mais juros pelo mesmo financiamento. Assim, há menos lucros para reter em crescimento orgânico, ou para distribuição a accionistas.

Terceiro, os projectos ficam menos atractivos quando desenvolvidos por portugueses. Deixamos de lançar projectos em Portugal que podem ser lançados em países com menores taxas de juro. Por exemplo, um projecto público com vida de 10 anos e TIR de 4% deveria ser rejeitado em Portugal (com o custo do capital a 4,66%), mas poderia ser aceite na Alemanha (com o custo do capital a 3,98%). Só no curto prazo as taxas dos países estão próximas, mas à excepção das discotecas onde o ‘payback' de segurança exigido é de 1 ano, os investimentos geradores de riqueza e emprego são de longo prazo.

Quarto, com esta desproporção entre o custo do capital na Europa, a recuperação da economia vai fazer-se a ritmos diferentes. O desenvolvimento pode tender a concentrar-se "lá" e a deixar de se fazer "cá".

Quinto, quanto mais as empresas sofrerem este desfasamento entre o custo do capital em Portugal e o dos países mais fortes da União Europeia, menos riqueza gerarão e menos lucro e emprego conservarão. A base de tributação (impostos sobre o rendimento ou sobre lucros) reduzir-se-á.

Sexto, quanto mais a base de tributação se reduz mais o Estado português tenderá a endividar-se para manter o mesmo nível de actividade de investimento ou de actividade social (a qual tem tendência a agravar-se pelo preocupante envelhecimento da sociedade portuguesa), aumentando ainda mais o risco do país e o custo do capital.

Sétimo. Entraremos por esta via numa espiral de definhamento nacional. Os jovens irão partir porque é "lá" que haverá emprego e riqueza e os velhos ficarão por "cá" com menos para se sustentarem...

Remédio? Ou tomam juízo no destino a dar ao dinheiro público ou então, "Que toque a fanfarra, cambada!"
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João Duque, Professor catedrático do ISEG

publicada no Diário Económico a 26/03/2009

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